sexta-feira, junho 01, 2012

O Ébrio...


Digo há tempos que não existe nada mais belo que nós mesmos. Nossa história pensada como única, indissociável de fatos e acontecimentos. Nossas "glórias" e "fracassos". Quando o enredo de nossa vida ou a de alguém (que se confunde em vários aspectos com a nossa) é cantado, encenado, pintado ou o que mais possa ser realizado artisticamente, aflora em mim emoções por vezes incontidas. 

Belchior disse que "não estou interessado em nenhuma teoria (...) / nessas coisas do oriente / romances astrais (...) / minha alucinação é suportar o dia a dia / meu delírio é a experiência com coisas reais (...) / amar e mudar as coisas..." Porra! É justamente disso que falo. Em que pese meu interesse por elfos, duendes e fadas, nada como um cotidiano de uma pessoa comum para instigar-me. Fazendo uma pergunta simples, com o critério da resposta rápida, na lata, sobre quais as minhas canções diletas, digo logo umas antigas e atuais que se fazem presentes em meu repertório particular, que escuto em meio a solidão canil. Coisas como Comfortably Numb, A Balada do Perdedor, Down em Mim, Construção, De passo em Passo, Mr. Tambourine Man, Boate Azul, O Rei do Baralho, Coração de Luto, tantos rocks, blues, boleros, sambas, modas... TODAS RETRATAM O COTIDIANO, A VIDA, SEUS SABORES E DISSABORES, O DESENROLAR DA EXISTÊNCIA ENQUANTO SER HUMANO, POIS. Aí está a beleza (ou a tristeza que acaba virando beleza em acordes e lamúrios cantarolados). É aí que encontro minha mística. O devir de casa, da rua, do boteco, do trabalho, e o mar de contradições envolvidas. A highway da vida e suas curvas...

Sabe quando se canta a tristeza estando em êxtase??? Feliz no amor conjugal (ou "namoral" ou "fical"), com os amigos, seu time ganhando campeonato, qualquer coisa???. Mesmo assim o indivíduo incorpora o sentimento ou mesmo cria tal sensação diante de fatos passados ou presentes (que não se enxerga no estado de saciedade). Pronto... deve ser isso mesmo. Diante de um monte de coisa que escutei durante tanto tempo, algumas poucas chegaram nesse estágio de forma sublime. Abaixo, uma que acabo de me ater intensamente:



O ÉBRIO
Vicente Celestino

Recitativo - Falado: Nasci artista. Fui cantor. Ainda pequeno levaram-me para uma escola de canto. O meu nome, pouco a pouco, foi crescendo, crescendo, até chegar aos píncaros da glória. Durante a minha trajetória artística tive vários amores. Todas elas juravam-me amor eterno, mas acabavam fugindo com outros, deixando-me a saudade e a dor. Uma noite, quando eu cantava a Tosca, uma jovem da primeira fila atirou-me uma flor. Essa jovem veio a ser mais tarde a minha legítima esposa. Um dia, quando eu cantava A Força do Destino, ela fugiu com outro, deixando-me uma carta, e na carta um adeus. Não pude mais cantar. Mais tarde, lembrei-me que ela, contudo, me havia deixado um pedacinho de seu eu: a minha filha. Uma pequenina boneca de carne que eu tinha o dever de educar. Voltei novamente a cantar mas só por amor à minha filha. Eduquei-a, fez-se moça, bonita... E uma noite, quando eu cantava ainda mais uma vez A Força do Destino, Deus levou a minha filha para nunca mais voltar. Daí pra cá eu fui caindo, caindo, passando dos teatros de alta categoria para os de mais baixa. Até que acabei por levar uma vaia cantando em pleno picadeiro de um circo. Nunca mais fui nada. Nada, não! Hoje, porque bebo a fim de esquecer a minha desventura, chamam-me ébrio. Ébrio...

Tornei-me um ébrio e na bebida busco esquecer
Aquela ingrata que eu amava e que me abandonou.
Apedrejado pelas ruas vivo a sofrer.
Não tenho lar e nem parentes, tudo terminou...
Só nas tabernas é que encontro meu abrigo.
Cada colega de infortúnio é um grande amigo,
Que embora tenham, como eu, seus sofrimentos,
Me aconselham e aliviam o meu tormento.
Já fui feliz e recebido com nobreza. Até
Nadava em ouro e tinha alcova de cetim
E a cada passo um grande amigo que depunha fé,
E nos parentes... confiava, sim!
E hoje ao ver-me na miséria tudo vejo então:
O falso lar que amava e que a chorar deixei.
Cada parente, cada amigo, era um ladrão;
Me abandonaram e roubaram o que amei.
Falsos amigos, eu vos peço, imploro a chorar:
Quando eu morrer, à minha campa nenhuma inscrição.
Deixai que os vermes pouco a pouco venham terminar
Este ébrio triste e este triste coração.
Quero somente que na campa em que eu repousar
Os ébrios loucos como eu venham depositar
Os seus segredos ao meu derradeiro abrigo
E suas lágrimas de dor ao peito amigo.