quinta-feira, outubro 31, 2013

Os 10 anos do Bolsa Família

"Aos olhos das nossas classes dominantes, antigas e modernas, o povo é o que há de mais reles. Seu destino e suas aspirações não lhes interessa, porque o povo, a gente comum, os trabalhadores, são tidos como uma mera força de trabalho - um carvão humano - a ser desgastada na produção. É preciso ter coragem de ver este fato porque só a partir dele, podemos romper nossa condenação ao atraso e à pobreza, decorrentes de um subdesenvolvimento de caráter autoperpetuante...” (Darcy Ribeiro, 1986)

Dignidade não é somente (e talvez nem seja de fato) ter um trabalho. Ser um "carvão humano", nas palavras do grande Darcy Ribeiro, não me parece algo do qual o sujeito deva se orgulhar. Enxergar o "trabalho" apenas como um "emprego", a partir da lógica capitalista da necessidade da venda da força de trabalho para sobreviver não nos permite, ao meu ver, usar uma palavra tão bonita: "dignidade". Apesar de entender que a lógica linear do "nascer, estudar, arranjar um emprego, casar e morrer" é motor da história de nossa sociedade, poderíamos, pelo menos, relativizar a linearidade da lógica. Existem coisas dignas fora desta dura regra.

Esqueçamos um pouco nosso inflexível destino. Tratemos o ser humano enquanto "ser humano". Nada de "recursos humanos", "força de trabalho"... Melhor, tratemo-nos como gente, ou gentes (enxergando a pluralidade das culturas do universo sapiens-sapiens).

Ok, agora temos um ponto de partida.

O polêmico Programa Bolsa Família completou 10 anos. Para os mais entusiastas (além de governistas exaltados), 36 milhões de pessoas saíram da miséria e vivem, hoje, no paraíso. Para os mais pessimistas (além de oposicionistas de nossa divina direita), 36 milhões de vagabundos, além de arranjarem seu maior lobby (o "pra quê trabalhar?!?"), se constituem nos eternos eleitores do PT à nível de executivo federal, o partido que gosta de inverter valores morais absolutos como, por exemplo, retirar dinheiro da classe média, que trabalha e sustenta este país, para repassar suas famigeradas bolsas a fundo perdido, fabricando delinquentes que não colaboram com o desenvolvimento de nossa promissora pátria luso-brasileira.

Geralmente esta última categoria (os pessimistas - além dos malvados) é aquela que chora nos grandes espetáculos nacionais, de grande aparição na mídia, como o garoto que supostamente, e infelizmente, matou toda a família e se questiona ("Meu Deus, aonde esse mundo está indo?"), e que, ao mesmo tempo, mostra-se alheio à violência nas periferias do Brasil (vinda de todos os lados, inclusive do Estado), desde que o tiroteio não bata sua porta, é claro.

Existe uma convenção na conservadora sociedade brasileira de que o Bolsa Família é um nefando programa, uma conspiração do PT para se perpetuar no poder. Aqueles mais sagazes dizem que nem foi o PT quem inventou a história da transferência de renda, mas que já existia uma história dessas no governo/gerência do FHC - a famosa Bolsa-Escola - em 2001, nos 45 minutos do 2º tempo de sua gestão. Argumentos simplistas, ralos. Na verdade, mergulhando no Distrito Federal dos anos 90, governado por Cristovam Buarque (à época do PT), vê-se a instituição de uma teia de iniciativas visando manter filhos de famílias carentes na escola.

Mesmo ainda não tendo atingido o status de "gozo da autonomia", visto que 18 anos não tinha, lembro-me do lançamento do Programa Fome Zero, em 2003. Diversas iniciativas articuladas seriam engendradas para a superação de uma chaga cinco vezes secular: a fome e a miséria. O recebimento de uma quantia em dinheiro por mês para auxiliar nos gastos da família, ou em quase todos os casos ser a única fonte de gasto da família, seria uma dentre as diversas ações, afinal "quem tem fome, tem pressa".

Muitas dessas iniciativas foram realizadas, a exemplo das milhares de cisternas construídas por segmentos organizados da sociedade no semiárido brasileiro. Trabalhei nisso, sou do semiárido e sei de sua imensa importância. Diversas eram as comunidades que possuíam como única fonte de água um cacimbão com a água mais verde que a mais escura das camisas do Palmeiras. "Segurança alimentar" era a expressão-chave que sintetizava as diversas ações: Incentivo à agricultura familiar, Reforma Agrária, merenda escolar e... transferência de renda. O programa era ousado. Bulir nos calos da história do Brasil e superar uma estrutura posta há 500 anos soa, no mínimo, como construir trincheiras contra a elite.

Passados os anos, viu-se que a transferência de renda se tornou o carro-chefe das políticas sociais. Com um nome pomposo - "Bolsa Família" - ganhou luz própria pela reunião das diversas iniciativas e exigências de acesso no sentido de melhorar gravíssimos indicadores, como frequência escolar, regularidade nos pré-natais, vacinação em dia, o próprio aumento/criação poder de compra; fez com que 36 milhões de pessoas saíssem da condição de extrema pobreza nesses últimos 10 anos ao custo de 24 bilhões, ou 0,46% do PIB (menos de 1/2 porcento!).

Engana-se quem pensa que isso é algo eminentemente socialista, de extrema esquerda, etc. Não sou economista, mas vejo que a opinião de muitos deles - sérios, não daquelas rasga-mortalhas dos telejornais - apontam que o aumento de poder de compra do brasileiro segurou a onda da famosa crise econômica de 2008. Quem é, nesses último 10 anos, que não viu o Seu Chico tornando seu mercadinho um pequeno - ou às vezes grande - supermercado? O Programa tem seu papel na política econômica vigente, baseada no consumo interno como mola propulsora.

Talvez a explicação do tal sucesso do Programa em detrimento de outras ações do Fome Zero seja esta sua própria lógica não transformadora de pilares de desigualdade, mas de aparar pontas de desigualdade extrema. Isso por si só é bonito, deveras relevante, mas não questiona relações de poder e não mudará a curva do gráfico do abismo que separa ricos e pobres. Também não se trata de ganhar na loteria. Os beneficiados continuam pobres, não tanto quanto antes, mas certamente no estágio da exploração. A proposta de empoderamento da gestão por parte dos beneficiados, característica do Fome Zero, não avançou. Isso poderia trazer um protagonismo ímpar para os mais pobres. Talvez seja esse o grande desafio do Programa: empoderar a população mais carente para ser o sujeito de transformação do país.

O que está em jogo não é uma suposta "esmola". Usando a lógica do "é muito mais do que 20 centavos", a questão posta, para mim, não está nesta órbita. Tal argumento segue uma linha de raciocínio digna de um escravocrata, herança direta daqueles que viram no Brasil uma oportunidade de saquear até a última gota de suor de sua gente. Não me parece fazer sentido não poder receber auxílio do Estado por um momento e, ao mesmo tempo, ser dependente numa relação de vassalagem com um fazendeiro, um empresário, um político local, oligarquias seculares. Todos esses atores, aliás, além de receberem auxílio do Estado (vide os infindáveis incentivos fiscais, dentre tanta coisa), historicamente pautam o mesmo na defesa de seus interesses corporativos. Mas aí é já outra conversa...